Rafael
Borges
Introdução
No próximo mês
lembraremos os 225 anos do início da revolta dos escravos da antiga colônia
francesa da ilha de São Domingo. Em Agosto de 1791, ainda em pleno calor da
Revolução Francesa, centenas de milhares de escravos negros que haviam sido
sequestrados de sua terra natal no continente africano se levantaram contra os
latifundiários brancos locais e o regime escravagista.
Depois de uma década de
resistência e luta contra as expedições militares espanholas, inglesas e
francesas, os negros insurretos, dirigidos por Toussaint L´ouverture e seu
estado maior, derrotaram as potências colonialistas, a escravidão e
estabeleceram o Estado independente do Haiti, produto legítimo da primeira
revolução negra vitoriosa da História.
A história do Haiti,
mais de dois séculos depois da revolução dos escravos, ainda faz a burguesia
branca suar frio e ter pesadelos diante da mínima possibilidade de um levante
vitorioso das massas exploradas e oprimidas dos antigos territórios coloniais.
A História do Haiti não apenas mostra que as revoluções das classes subalternas
são possíveis e necessárias, mas também que podem ser vitoriosas.
Trata-se, então, de uma
tarefa estratégica para a burguesia e seus propagandistas racistas “criarem”
uma suposta história onde o Haiti, um Estado negro, é o país que “nasceu para
dar errado”, o lugar onde a miséria e a violência seriam “naturais”. Um “povo incapaz”
de construir sua própria nação.
Em nossos dias, com
essa narrativa racista e farsesca, tenta-se criar a ideia de que a “ajuda
humanitária” (ocupações militares) por parte das antigas metrópoles
colonialistas, os Estados imperialistas da atualidade, que assassinaram os milhões
de indígenas que habitavam a ilha, que escravizaram e torturaram milhares de
negros e realizaram inúmeras investidas militares e econômicas contra o Haiti
independente seria a única alternativa ao “infeliz e desamparado” povo
haitiano.
Os
jacobinos negros: redescobrindo uma história
Conhecer, estudar e redescobrir uma História
de resistência negra como é a Revolução do Haiti, desconstruindo a narrativa
racista, é algo determinante para todos os que nos colocamos nas primeiras
fileiras do combate ao racismo no Brasil, nos EUA e na África. A classe
trabalhadora brasileira, essencialmente negra, deve conhecer a história de luta
dos seus irmãos de raça e classe e tirar as lições estratégicas desse processo.
Na tarefa de desbravar essa História cruzada por violência, estupros, dor, mas
também por glórias e vitórias, o livro “Os Jacobinos Negros”[1] de
CLR James é, sem sombra de dúvidas, uma leitura obrigatória.
Coube a James,
dirigente trotskista negro, de forma apaixonante e envolvente, narrar em 323
páginas impregnadas de materialismo histórico dialético a luta dos negros
haitianos pela liberdade e independência.
“Essa
foi a única revolta de escravos bem sucedida da História, e as dificuldades que
tiveram de superar colocam em evidência a magnitude dos interesses envolvidos.
A transformação dos escravos, que, mesmo às centenas, tremiam diante de um
único homem branco, em um povo capaz de se organizar e derrotar as mais poderosas
nações europeias daqueles tempos é um dos grandes épicos da luta revolucionária
e uma verdadeira façanha” (p.15)
“Os Jacobinos Negros” foi
o resultado de pelo menos seis anos de estudos, alguns meses de pesquisas em
arquivos na França e conversas com intelectuais haitianos e africanos. A
intenção de CLR James era “não apenas analisar, mas demonstrar, em seu
movimento, as forças econômicas da época; a forma como moldam, na sociedade, na
política e nos homens, tanto os indivíduos como as massas; a maneira pela qual eles
reagem ao meio, em um daqueles raros momentos em que a sociedade está em plena
ebulição e, por tanto, fluida”[2].
Não temos nenhuma
pretensão em expor aqui todo o conteúdo do livro. Seria uma tarefa impossível.
O objetivo dessas breves linhas, onde abusaremos de citações da obra, é tão
somente apresentar a contribuição teórica e histórica de CLR James ao público
brasileiro, tendo em vista que a primeira edição no país, pela editora
Boitempo, é ainda muito recente. O livro também é uma ótima porta de entrada
para aqueles que ainda não conhecem as demais contribuições do teórico e
revolucionário negro CLR James.
Da
África ao Navio Negreiro: histórias de dor e resistência
A obra de CLR James não
poderia começar de outro modo: do relato do sequestro bárbaro de milhões de
africanos de suas terras à viagem infernal nos navios negreiros.
Nem Deus ou qualquer
outra “entidade superior” os haviam capturados, violados ou escravizados, como ainda
prega o lixo ideológico dos setores conservadores que somos obrigados a ouvir
em pleno século XXI. Pelo contrário, o tráfico negreiro foi idealizado e executado
por homens brancos de “carne e osso” e se tornou indispensável ao
desenvolvimento do capitalismo comercial dos séculos XVI e XVII. No século
XVIII, a colônia das Índias Ocidentais de São Domingos, com o tráfico negreiro
em seu centro, ainda representava dois terços do comércio exterior da França.
Esse acúmulo de capital, por sua vez, foi decisivo para o desenvolvimento da
indústria:
“Aproximadamente
todas as indústrias que se desenvolveram na França durante o século XVIII
tiveram sua origem em bens e mercadorias destinadas à costa da Guiné ou à
América. O Capital de comércio de escravo as fertilizava; embora a burguesia
comercializasse outros produtos além de escravos, tudo o mais dependia do
sucesso ou da falência do tráfico” (p.58)
As inúmeras teorias
racistas, no campo da religião ou da “ciência”, eram nada mais que
justificativas ideológicas para que as potências marítimas pudessem saquear o
continente africano e raptar seus povos. O discurso de um continente de
misérias e guerras é demolido por James quando explica que “no século XVI, a
África Central era um território de paz e as suas civilizações eram felizes”.
Contra a falácia de que os europeus estariam ali para salvá-los das inúmeras
guerras entre as nações africanas, James também esclarece que “as guerras
tribais, das quais os piratas europeus afirmavam libertar as pessoas, eram
meros simulacros; uma grande batalha significa meia dúzia de homens mortos.”[3]
Não havia um continente a ser salvo de grandes guerras, nem de pestes ou
pobreza, mas povos a serem escravizados pela sede dos lucros das metrópoles.
Tribos e nações
africanas foram lançadas umas contra as outras. “As tribos tinham de suprir o
comércio de escravos, ou então elas mesmas seriam vendidas como escravas.” Após
a captura, os escravos “eram amarrados junto uns dos outros em colunas,
suportando pesadas pedras de 20 a 25 quilos para evitar as tentativas de fuga;
então, marchavam uma longa jornada até o mar, que, algumas vezes, ficava a
centenas de quilômetros e, esgotados e doentes caíam para não mais se erguer na
selva africana”[4].
Nos navios negreiros,
“ao contrário das mentiras que foram espalhadas tão insistentemente sobre a
docilidade dos negros, as revoltas nos portos de embarcação e a bordo eram
constantes. Por isso, os escravos tinham de ser acorrentados: a mão direita à
perna direita, a mão esquerda à perna esquerda, e atrelados em colunas a longas
barras de ferro”. Alguns relatos colhidos por James em cartas e documentos
citam exemplos como o do capitão de um navio negreiro que durante a viagem
“matou uma parte de seus escravos para alimentar com a carne deles a outra
parte”, em outro caso, o capitão “para inspirar terror nos escravos, matou um
deles e repartiu seu coração, seu fígado e suas entranhas em trezentas partes,
obrigando os outros escravos a comê-las, ameaçando aqueles que não o fizessem
com o mesmo suplício” [5].
Quando eram levados ao
tombadilho do navio, uma vez por dia, “alguns aproveitavam a oportunidade para
pular ao mar gritando em triunfo enquanto se afastavam do navio e desapareciam
sob a superfície.” O suicídio transformava-se numa arma contra a escravidão.
A
Resistência Negra na Colônia de São Domingo
Após a viagem, os
escravos eram postos nas docas para serem vendidos. Comprados pelos grandes
fazendeiros eram postos imediatamente, na sua grande maioria, em alguma etapa
da produção da cana-de-açúcar.
O cotidiano do escravo
negro, como sabemos, era de pesados trabalhos e intensos castigos físicos, mas
as palavras de James tem o poder de nos levar até àquele momento histórico e
nos fazer presenciar tais cenas:
“Mas
não havia engenho que o medo ou uma imaginação depravada não pudesse conceber
para romper o ânimo dos escravos e satisfazer a luxúria e o ressentimento de
seus proprietários e guardiões: ferros nas mãos e nos pés; blocos de madeira,
que os escravos tinham de arrastar por onde quer que fossem; máscara de folha
de lata, projetada para evitar que eles comessem a cana-de-açúcar, e o colar de
ferro. O açoite era interrompido para esfregar um pedaço de madeira em brasa no
traseiro da vítima; sal, pimenta, cidra, carvão, aloé e cinzas quentes eram
deitadas nas feridas abertas. As mutilações eram comuns: membros, orelhas e,
algumas vezes, as partes pudendas para despojá-los dos prazeres aos quais eles
poderiam se entregar sem custo. Seus senhores derramavam cera quente em seus
braços, mãos e ombros; despejavam o caldo fervente da cana nas suas cabeças;
queimavam-nos vivos; assavam-no em fogo brando; enchiam-nos de pólvora e os
explodiam com uma mecha, enterravam-no até o pescoço e lambuzavam as suas
cabeças com açúcar para que as moscas os devorassem; amarravam-nos nas
proximidades de ninhos de formiga ou de vespas; faziam-nos comer os próprios
excrementos, beber a própria urina e lamber a saliva dos outros escravos.”[6]
As mulheres negras,
além dos frequentes estupros e de toda violência psicológica, não eram menos
poupadas dos duros castigos físicos. As negras grávidas não escapavam do
chicote de “quatro postes”. Seus braços e pernas eram amarrados a quatro postes
fincados ao chão com um buraco cavado para encaixar a barriga. Assim eram
chicoteadas. O Código Negro, que vigorava na Colônia de São Domingos e
pretendia “regulamentar” a relação entre senhores e escravos, pretendia
“limitar” o número de chibatadas em cinquenta (!). Mas tal legislação jamais
foi cumprida e era comum o escravo receber chibatadas até a morte.
Mas a narrativa histórica de um escravo negro
dócil, que aceita 14 horas diárias de trabalho duro, afastado dos seus
familiares e que suporta castigos inimagináveis como os descritos a cima com total
passividade e absoluta resignação é nada mais do que uma farsa histórica. Os
negros estavam dispostos a fazer tudo o que estava ao seu alcance para sair da
condição de escravo. “O suicídio era um hábito comum, e era tal o desprezo que
tinham pela existência que, muitas vezes, os escravos tiravam a própria vida
não por motivos pessoais, mas apenas para irritar seus donos. Viver era duro e
a morte, acreditavam, significava não apenas a libertação, mas a volta à
África”[7]
O envenenamento era um
meio muito utilizado, pois “um escravo, privado de sua esposa por um dos seus
senhores, poderia envenená-lo, e esse era um dos motivos mais frequentes dos
envenenamentos”. Mas também, em algumas situações, os escravos envenenavam seus
próprios filhos e entes familiares de modo a impedir que passassem pelos
sofrimentos descritos.
Os propagandistas da
ideia do “escravo dócil” e resignado à escravidão, que aqui no Brasil se
escondem atrás do “Mito da Democracia Racial”, frequentemente capturam da
história situações excepcionais para mostrar a validade de suas ideias. Mas a
História do Haiti, não só durante os anos do processe revolucionário, mas
também nas décadas que o precederam, é um tiro mortífero na ideologia racista.
O ódio do escravo com sua situação e com seu senhor estava expresso em cada
manifestação da vida dos negros.
Mas as ações isoladas,
como os envenenamentos, eram limitadas. Era preciso organização e preparação
para enfrentar os fazendeiros brancos. Não havia outro momento ou espaço para
confraternização que não a religião. Assim, “o Vodu era o meio da conspiração.
Apesar de todas as proibições, os escravos viajavam quilômetros para cantar,
dançar, praticar os seus ritos e conversar; e então, desde a Revolução, escutar
as novidades políticas e traçar os seus planos.”[8]
Contra o mito do
escravo dócil, CLR James explica que, mesmo com todas as tentativas dos
colonialistas a proibirem, uma canção circulou por 200 anos em todo o Haiti nas
reuniões ou cerimônias de Vodu:
“Ê!Ê! Bomba! Heu! Heu!
Canga, mouné de lé!
Canga, mouné de lé!
Canga, do Ki la!
Canga, li![9]
(Juramos destruir os
brancos e tudo o que possuem; que morramos se falharmos nessa promessa)
A Revolução dos
escravos no Haiti foi precedida de inúmeras formas de resistência. Nunca houve
um dia em que um escravo não tentava fugir ou matar seu senhor ou os capatazes.
Além das ações individuais nas fazendas e das conspirações nos cultos de Vodu
também é preciso destacar que diversos quilombos foram formados ao longo do
território da ilha de São Domingo muito antes de 1791. Esses negros quilombolas,
já habituados a se organizarem política e militarmente, também vão cumprir um
papel decisivo no processo revolucionário.
A revolução também foi
precedida de várias rebeliões locais que são verdadeiros ensaios dos combates
que viriam mais tarde.
Conclusão
A Revolução do Haiti,
com a revolta dos escravos como eixo central, foi um complexo processo
político, social e militar, envolvendo negros, “mestiços” e brancos de
diferentes nacionalidades, que está diretamente relacionado aos impactos da
Revolução Francesa nas colônias do antigo regime.
A luta pela
independência do Haiti, conquistada 20 anos antes da independência do Brasil,
não coube aos grandes proprietários de terras, mas sim aos mais de quinhentos
mil escravos da colônia. Ao contrário de nosso país, onde o aristocrático
processo de independência não levou ao fim da escravidão, o Haiti conquistou
sua liberdade em pleno combate aos escravocratas.
Mas a Revolução do
Haiti não foi feita somente de explosões locais espontâneas e desorganizadas de
escravos contra seus senhores. Para vencer as grandes potências europeias da
época, incluindo uma expedição inglesa de mais de 60 mil soldados bem armados e
treinados, além dos fazendeiros ricos, os negros haitianos tiveram que se organizar,
ter disciplina, fazer alianças, ou seja, se aprofundar na arte da guerra. Coube
a Toussaint L´ouverture, e seus generais negros, construir um exército de
escravos para libertar o Haiti das amarras do colonialismo e da escravidão.
Há 225 anos da
revolução dos escravos no Haiti, quando os negros ainda morrem pelas balas do
Estado em todo o continente americano, acreditamos que esse pequeno artigo já
cumpriria o seu papel se mais jovens negros se motivassem a ler essa grande
obra de CLR James.
Hoje o povo haitiano
ainda é agredido pelas potências. Lamentavelmente, os governos petistas, se
apoiando no discurso racista de um Haiti incapaz de se desenvolver
autonomamente, se prestaram ao odioso papel de “capitão do mato” do capital
financeiro e comandam uma ocupação militar que já dura mais de uma década e que
até agora não trouxe nada para o Haiti a não ser assassinatos, estupros e
epidemias. As tropas da Minustah permanecem no Haiti para garantir a ordem
necessária para que as grandes empresas estrangeiras utilizem “em paz” a mão de
obra super-explorada do povo haitiano. Conhecer a verdadeira história do Haiti
significa inevitavelmente se localizar contra a presença das tropas brasileiras
e da ONU nesse país. O Haiti pode ser livre e soberano. Não temos dúvidas que
essa tarefa caberá aos trabalhadores haitianos com a solidariedade dos
trabalhadores e negros de todo o continente.
Na segunda parte desse
artigo iremos destacar os episódios mais importantes da guerra de independência
do Haiti, as alianças esporádicas com distintos setores, a difícil e complicada
relação entre negros e “mestiços” e o papel de Toussaint L´ouverture na
construção do exército negro.