quinta-feira, 19 de julho de 2012

O PROBLEMA DA INTERVENÇÃO NA SÍRIA: UMA QUESTÃO MORAL?


"Tendo em vista a atual situação da Síria e ameaças de uma possível intervenção imperialista nesse país reproduzo artigo de Denis M, militante da LER-QI e estudante de relações internacionais, sobre o tema em polêmica com algumas linhas das relações internacionais, em particular as concepções do professor de Harvard e filósofo político Michael Walzer."


por Denis M.

Um dos mais recentes acontecimentos do conflito armado entre governo e oposição na Síria foi a suspensão da missão de monitoramento da ONU, devido a escalada de violência entre as partes envolvidas, que implica riscos aos observadores. De fato, tal missão vem servindo para comprovar a inépcia da mais notória Organização Internacional em cumprir sua missão principal, ou seja, a preservação da paz; pois o número de mortos no conflito continuou a aumentar mesmo sob a vigília dos observadores de Kofi Annan – tal como se demonstrou no massacre de Houla, no qual se estima ao menos 90 mortos e foi relatada a indignação de moradores, pois os apelos destes aos monitores da ONU provaram-se infrutíferos para evitar a tragédia. 
A atual situação síria, entretanto, põe em xeque não só a atuação da ONU, mas também o próprio fim do conflito por via de uma solução negociada. A tardia constatação, de Herve Ladsous (chefe do Departamento de Operações de Manutenção da Paz da ONU) de que a tragédia síria já pode ser considerada uma guerra civil   corrobora a improbabilidade da conciliação, pois, neste caso não se trata meramente de facções em disputa interna por poder, mas sim de um regime que, para se auto-preservar, não tem escrúpulos em derramar o sangue de seu próprio povo. Seria no mínimo ingênuo, portanto, supor que tal regime - o qual já provou estar disposto a lançar mão de todos os meios para garantir o monopólio do poder, inclusive das mais brutais violações de direitos humanos   – deseje voluntariamente permitir a existência de uma oposição que questione sua legitimidade. Analogamente, é difícil crer que o povo sírio aceite uma saída que não envolva minimamente a remoção do atual governo e possivelmente alguma forma de julgamento de suas figuras mais proeminentes, incluindo Bashar aL-Assad. 
A postura negociadora, contudo, é defendida não somente por pacifistas, mas também por atores motivados por interesses próprios, como ocorre mais nitidamente com China e Rússia. Estes países vêm relutando em apontar criticas mais contundentes ao regime de Assad, pois se preocupam com o possível aumento da presença da OTAN na região que, a exemplo da Líbia, poderia se concretizar sob forma de intervenções militares. A apreensão do governo russo é particularmente acentuada, dadas as relações deste com o regime de Assad, o qual é um grande comprador de armas russas e permite à Rússia a manutenção de sua única base naval no Mediterrâneo.  
Mas se a negociação já parece estar fora de alcance, haveria alguma solução para que novas fatalidades civis possam ser evitadas? Ou, posto em outros termos, dado que este é um problema que se impõe internacionalmente, seria possível que sua solução possa advir de uma intervenção internacional? Esta é uma questão controversa não apenas no que se refere ao caso sírio em questão, mas no campo das Relações Internacionais em geral e, em particular, no do Direito Internacional, pois envolve a relativização de um conceito tão caro a estas duas disciplinas: a soberania.
De particular relevância para este debate, devido a sua notoriedade e a sua relevância acadêmica, é o trabalho de Michael Walzer. Em um segmento de uma de suas mais reconhecidas obras (Guerras justas e injustas) Walzer aborda especificamente a questão da intervenção com fins humanitários. Ainda que não despreze as preocupações legalistas, o problema para Walzer dá-se em termos primordialmente morais. Tais intervenções, para o autor, justificam-se quando reagem a ações “que abalam a consciência moral da humanidade”  . Argumentação, portanto, que também encontra apoio na proposta kantiana por uma ética cosmopolita/universalista. Cabe notar que a identidade dos atores “interventores” é pouco relevante, uma vez que, para Walzer, “qualquer Estado capaz de impedir a carnificina tem o direito, no mínimo, de tentar reagir.”   Nestes marcos, a pressão diplomática e o discurso dos Estados Unidos – e até mesmo do novo presidente francês, o “socialista” François Hollande – vem no sentido de enrijecer a pressão sobre o regime de Assad, chegando até a assumir publicamente que a intervenção militar é uma opção.
Mas dadas as reais condições do cenário internacional, poder-se-ia dizer que uma possível intervenção da OTAN/EUA na Síria de fato estaria a serviço de causas humanitárias ou mesmo morais? Para isto, é relevante elencar os principais interesses em jogo para estes atores na região. Dentre os interesses econômicos imediatos, pode-se destacar a existência de importantes reservas de gás no território sírio; além deste ser fundamental para o percurso de instalação do “Arab Gas Pipeline” – gasoduto que permitiria à Europa importar gás desde o Mar Cáspio até o Mediterrâneo, evitando a Rússia.  
Além disso, não se pode deixar de notar a importância geopolítica da Síria no Oriente Médio, que possui conflituosas relações com Israel – sendo que este Estado ocupa importante parte do território sírio (Colinas de Golã) desde 1967 – ao mesmo tempo em que se alia a grupos que se opõem ao Estado sionista, tal como o Hamas, o Hezbollah e o governo iraniano. Uma mudança de regime em Damasco poderia, portanto, ser muito útil a Israel e aos EUA, pois significaria maior isolamento e vulnerabilidade de Teerã. Analogamente, para os EUA, um regime mais dócil em Damasco seria um elemento relevante para a manutenção de sua hegemonia no Oriente Médio, tendo em vista o fracasso das guerras no Afeganistão e no Iraque e o resultante aumento do antiamericanismo na região.
Outro elemento que corrobora o ceticismo com que se deve enxergar as intenções humanitárias de EUA e demais membros da OTAN é a maneira pela qual estes estados vêm lidando com a chamada Primavera Árabe como um todo. No caso das declarações a favor da democracia no Egito, por exemplo, é pertinente observar que fotos de Obama conversando fraternalmente com seu ex-colega Mubarak são tão fáceis de encontrar como o é fazer uma trivial busca no “Google”. Deve-se a esta duradoura relação entre Washington e o ex-ditador egípcio, o fato de que o presidente democrata só tenha pedido a Mubarak que se retirasse apenas quando a queda deste pela imposição das massas revoltosas já era óbvia. O inverso ocorreu no Bahrein, onde as manifestações foram reprimidas com brutalidade pela monarquia local, o que também se deu no Egito, mas com o diferencial de que no Bahrein outros países (principalmente a Arábia Saudita) também enviaram forças militares para auxiliar o regime a calar seus manifestantes. Curiosamente este esdrúxulo caso de “cooperação internacional”, que se pagou com o sangue da população civil do Bahrein, não parece ter causado comoção na mídia ocidental nem em Obama, que não recomendou a renúncia do monarca tal como o fez tardiamente em relação ao ditador egípcio. Este “esquecimento” não é fortuito: “o Bahrein abriga a 5ª Frota dos Estados Unidos, com 6 mil militares, numa posição de frente ao Irã e próximo à Arábia Saudita, maior produtora de petróleo do mundo”.  

Verifica-se, pois, que a questão humanitária é mais um subterfúgio semântico do que a verdadeira causa das preocupações das potências centrais em relação aos povos árabes. Portanto, a justificativa moral de Walzer neste caso parece desamparada; assim como a própria idéia de uma moralidade universal pode ser questionada. Tal questionamento é empreendido, por exemplo, pelo marxismo clássico, que rejeita a idéia de um código de conduta transcendental – dissociado do tempo histórico e das circunstancias materiais – mas, ao contrário, compreende que os valores (portanto, a própria ética e a moral) advêm das relações sociais e das relações de produção das classes.  A moralidade é um desdobramento da ideologia, portanto, não é sagrada ou imutável; mas, ao contrário, é relativizada pelas classes dominantes conforme seus interesses: “os governos mais "humanos", que em tempo de paz "detestam" a guerra, em tempo de guerra fazem do extermínio do maior número de homens o primeiro dever de seus soldados.”   Esta relativização da moral permite explicar por que os governos da OTAN “preocupam-se” tanto com as questões humanitárias na Síria, mas desconsideram as violações em curso no Bahrein – ou em Guantanamo...
Mas, apesar da crítica marxista da moralidade universal ser evidenciada neste caso pela análise dos reais interesses das potências, seria possível, ainda, insistir na linha de Walzer e indagar que uma intervenção na Síria poderia acabar servindo a fins morais ainda que tais fins não sejam os principais? A tal questionamento pode-se recorrer à análise do que uma possível intervenção implicaria na prática. Primeiramente, a Síria é um país com, aproximadamente, quatro vezes mais o número de habitantes e território dez vezes menor do que a Líbia, o que torna aquele país muito mais densamente povoado do que este. Se os chamados bombardeios “cirúrgicos” já causaram na Líbia terríveis consequências em termos humanos e estruturais, pode-se imaginar quão catastróficos tais bombardeios seriam para a concentrada população síria. Também cabe ressaltar que, para além dos danos imediatos, a intervenção estrangeira arrisca trazer mais instabilidade a uma região já conturbada, com a possibilidade de intensificação ou mesmo regionalização do conflito. O Exército de Libertação Sírio e o próprio Conselho Nacional Sírio, além de não serem as únicas entidades oposicionistas, são em si mesmas heterogêneas, contendo diferentes correntes políticas, étnicas e religiosas – inclusive de orientação fundamentalista, como a Irmandade Muçulmana – e não há consenso entre elas sobre a validade de uma intervenção externa. A possibilidade de que alawitas, sunitas, curdos e outras minorias possam começar a se enfrentar abertamente também pode se intensificar com uma intervenção. Os perigos de uma intervenção são tantos que até mesmo personalidades como Gareth Evans, considerado como um dos pais da doutrina de intervenção humanitária, confirmam: “O temor é que qualquer passo em direção a um envolvimento militar externo irá detonar uma grande explosão, o que tornará o número de baixas no momento parecer pequeno”.  
Observa-se, portanto, que os problemas inerentes a uma intervenção militar na Síria tornam altamente questionáveis os argumentos de base moral, pois, obviamente, desencadear uma intervenção que causará mais danos do que benefícios, sob nenhuma base moral é justificável. Desnudar os reais interesses envolvidos na questão síria e os nefastos efeitos de uma intervenção militar não pode significar, por outro lado, que o povo sírio não tenha o justo direito de se rebelar contra seus opressores; ao contrário do que faz, por exemplo, o presidente Hugo Chávez, para o qual os revoltosos sírios são apenas meros “terroristas”.   Uma solução duradoura para o dilema na Síria – por mais impotentes que possamos nos sentir frente a isso – não poderá vir, literalmente, do céu por meio das bombas “humanitárias” da OTAN, nem das balas de Assad (como pretende Chávez), mas somente da união dos próprios povos oprimidos da Síria.


REFERÊNCIAS:

ANDERSON, Jon Lee. Letter from Syria: the implosion. The New Yorker. Nova York, 27 fev. 2012.

ARMANIAN, Nazarin. El “factor gas” em la crisis síria. Domínio Público, 7 abr. 2012. Público.es. Disponível em: <http://blogs.publico.es/dominiopublico/5052/el-factor-gas-en-la-crisis-siria/>. Acesso em: 10 jun. 2012.

BAVA, Silvio Caccia. A geopolítica não considera direitos. Le Monde Diplomatique Brasil. Editorial/dossiê. Disponível em: <http://www.diplomatique.org.br/edicoes_especiais_editorial.php?id=9>. Acesso em: 10 jun. 2012.

BROWN, Chris. Marxism and international ethics. IN: NARDIN, Terry. Traditions of international ethics. Cambridge: Cambridge university press, 1992. Cap.11

Chávez defende presidente sírio e critica EUA. Jornal do Brasil, 7 abr. 2012. Disponível em: <http://www.jb.com.br/internacional/noticias/2012/04/07/chavez-defende-presidente-sirio-e-critica-eua/>. Acesso em: 10 jun. 2012.

NINIO, Marcelo. Não há solução militar na Síria, diz “pai’ da intervenção humanitária. Folha.com, 13 jun. 2012. Mundo. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mundo/1103652-nao-ha-solucao-militar-na-siria-diz-pai-da-intervencao-humanitaria.shtml>. Acesso em: 15 jun. 2012.

PENTEADO, J.R. Para especialista, guerra na Síria ainda deve durar muito tempo. Brasil de Fato, 9 abr. 2012. Disponível em: <http://www.brasildefato.com.br/content/para-especialista-guerra-na-s%C3%ADria-ainda-deve-durar-muito-tempo>. Acesso em: 10 jun. 2012.

Syria crisis: Houla child massacre confirmed by UN. BBC News, 26 mai. 2012. News Middle East. Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/news/world-middle-east-18221461>. Acesso em: 10 jun. 2012.

STERLING, Joe. Is Syria in a civil war? CNN,  13 jun. 2012. Disponível em: <http://articles.cnn.com/2012-06-13/middleeast/world_meast_syria-civil-war_1_james-fearon-civil-war-rebel-group?_s=PM:MIDDLEEAST>.  Acesso em: 15 jun. 2012.

TROTSKY, Leon. Sobre os “preceitos morais universalmente válidos”. IN: Moral e Revolução. Marxist.org, 23 nov. 2002. Disponível em: <http://www.marxists.org/portugues/trotsky/1936/moral/cap01.htm>. Acesso em: 10 jun. 2012.

WALZER, Michael. Intervenções. IN: Guerras justas e injustas: uma argumentação moral com exemplos históricos. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

Nenhum comentário:

Postar um comentário